Vou começar este texto com uma anedota: certa vez conversava com um senhorzinho argentino, um sujeito (em teoria) esclarecido, dono de um pequeno sebo, militante peronista. Ele me pediu ajuda para olhar a programação de um tradicional cinema do centro da cidade de Buenos Aires, já que não manjava muito “das internetes”. Estava com vontade de ver um filme para espairecer depois de um dia de trabalho. Olhando a programação, sugeri a ele o novo filme dos Irmãos Dardenne na época, A Garota Desconhecida. Mas foi apenas eu mostrar a imagem da foto do cartaz com o título do filme, que foi o suficiente para ele me responder: “Ah, não, filme de mulher eu não quero ver”. Perguntei se ele tinha alguma ideia sobre do que se tratava o filme, mas ele disse que não se importava, apenas não queria ver “este tipo de filme”. Fiquei confusa e ao mesmo tempo incrédula. Ele estava realmente se recusando a ver um filme pelo fato da protagonista ser uma mulher? Como na semana passada nós já havíamos discutido sobre outro assunto, dessa vez resolvi deixar passar. Mas até hoje fico encucada com esse comentário, até porque fui me dando conta de que ele reflete o pensamento de muitos críticos, espectadores, e de outros meros mortais do sexo masculino.
Pois a verdade é que ainda hoje muitas pessoas associam que produções artísticas realizadas por mulheres (ou sobre mulheres), seja ela cinema, literatura, etc., supostamente seriam voltadas para um público de mulheres e recebem uma classificação específica que as separam das demais produções, isto é, daquelas realizadas por homens. Enquanto isso, um livro escrito ou um filme feito por um homem, através da perspectiva de um personagem homem, que discorre sobre questões ligadas ao universo de homens, não são rotulados como uma produção masculina. São definidos apenas como “Literatura” (alguns até com a pompa de “Literatura Universal”) ou simplesmente como Cinema.
Nesta lógica, uma produção cinematográfica considerada “coisa de mulher”, nada mais é que um ponto de vista de uma mulher sobre determinado assunto ou uma expressividade que venha de um corpo de mulher. E, aparentemente, não haveria nada de equivocado nisso. Mas sabemos que o sentido que está embutido neste termo não é apenas esse, pois se o “feminino” em si não é nenhum problema, a carga simbólica atribuída a ele, por outro lado, costuma ser, pois faz parte da construção de um imaginário social ditado por homens, que atribui às mulheres certos interesses ou características específicos. Por detrás do termo “feminino”, relacionado à literatura ou ao cinema, existe uma intenção depreciativa, que supostamente carrega a ideia de que estas produções não estariam à altura, ou não teriam o mesmo valor artístico e conceitual, das demais produções.
O “Cinema de Mulher” de Margarethe Von Trotta
Para ajudar a discorrer sobre o assunto, gostaria de falar um pouco sobre a cineasta alemã Margarethe Von Trotta. Poderia falar sobre muitas outras mulheres talentosas do cinema, com uma filmografia tão ou mais impactante que a dela, mas alguns fatores específicos me levaram até ela neste momento: O primeiro, e mais trivial, é pelo fato de recentemente ter sido organizada uma mostra na Caixa Cultural do Rio de Janeiro sobre sua obra, o que me fez retomar o contato com seus filmes. Apesar de já conhecer alguns deles, por ignorância minha (e pelo fato de em nossa sociedade existir um histórico de desvalorização da produção de mulheres) não sabia que era ela que atuava por detrás das câmeras. E foi especialmente interessante poder ter uma visão do conjunto da produção de uma cineasta como ela. O segundo motivo se deve a um dos aspectos mais marcantes de sua filmografia até o momento: a relação entre as personagens mulheres, que levaram inclusive a criação do termo “sisters film” para definir esta característica fundamental de sua obra.
E o terceiro, mas não menos importante, se deve ao estilo de muitos de seus filmes, que são considerados uma espécie de “thriller político”, um gênero usualmente tachado como sendo “masculino”.
O fascínio de Margarethe Von Trotta pelo universo cinematográfico se iniciou na Paris dos anos 50, quando despontava o movimento da Nouvelle Vague. Neste período, chamou a atenção da cineasta os temas cotidianos retratados pelo cinema e como os cineastas incorporavam elementos gângsteres nestes filmes (ex: Atirem no Pianista, François Truffaut; e Acossado, de Jean-Louc Godard). Era algo muito diferente dos melodramas que dominavam as salas de cinema da Alemanha do período. Mas o primeiro filme que a marcou profundamente foi O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, pelo fato do filme explorar a morte de maneira tão contundente. E isso para uma alemã, do início do pós-guerra, tinha um impacto enorme. A partir de então, Von Trotta reparou o pouco que sabia sobre a história recente da Alemanha, principalmente em relação à Segunda Guerra e seus desdobramentos, pois nem a família ou a escola falavam a respeito. Na Alemanha, era como se “todos os adultos estivessem em silêncio”, ela explica.
Apesar de sentir uma vontade genuína de dirigir filmes, “não dizia isso em voz alta, pois sabia que as pessoas dariam risada”, ela comenta em uma entrevista. Começou então o seu envolvimento profissional no cinema como atriz, trabalhando em muitos dos filmes do renomado cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder. Depois de co-dirigir A Honra Perdida de Katharina Bloom com o diretor Volker Schlöndorff, com quem foi casada mais de vinte anos, Von Trotta fez seu primeiro filme solo em 1977, O Segundo Despertar de Christa Klages, sobre uma professora que assalta um banco para saldar as dívidas da escola ameaçada de fechar. Christa, então, foge para Portugal, onde consegue um pesado trabalho numa cooperativa agrícola. Sua amiga Ingrid encontra um meio de visitá-la e, juntas, tentam suportar a situação. E, assim, a diretora inaugura o que viriam a ficar conhecidos como os “sisters films” de Margarethe Von Trotta. Neles, as personagens, para amenizar seus problemas interiores, buscam o conforto, os conselhos e a compreensão com sua ligação afetiva mais íntima, geralmente uma amiga ou uma irmã.
Em 1981, ela lança seu segundo filme seguindo esta linha, Os Anos de Chumbo, que conta a históra da Alemanha a partir da Segunda Guerra Mundial através da relação entre duas irmãs. O filme foi premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, fazendo dela a segunda cineasta mulher a conquistar o prêmio desde Leni Riefenstahl, por Olympia, em 1938.
Cinco anos depois, Von Trotta dirige Rosa Luxemburgo, um filme originalmente idealizado por Fassbinder, que morreu antes de poder concretizá-lo. Como ela tinha uma relação próxima com o diretor e o interesse pela figura da revolucionária, encarou o desafio de realizar o filme. No entanto, não seguiu o roteiro que Fassbinder já havia escrito e escreveu outro que tivesse mais a ver com o filme que ela queria fazer. “As cartas dela, por exemplo, mostravam a sua vulnerabilidade. E isso era importante para mim”, conta a diretora.
Mesmo em seu talvez mais conhecido filme biográfico, Hanna Arendt — Ideias Que Chocaram O Mundo, este traço do “sisters films” não é totalmente abandonado. É especialmente interessante notar a relação da protagonista, a filósofa Hannah Arendt, com as outras personagens mulheres que compõem a trama, como a novelista norte-americana, Mary McCarthy, e a assistente de Arendt, Lotte Köhler. Com a polêmica que as ideias de Arendt irão despertar após a filosofa presenciar o julgamento do oficial nazista, Adolf Eichmann, são estas duas personagens que, sem hesitar, ficarão ao seu lado e a ajudarão a defender-se dos ataques de amigos, do meio acadêmico e da sociedade em geral.
No cinema de Margarethe Von Trotta, portanto, destacam-se alguns dos grandes temas da vida política da Alemanha do século XX, sempre registrados pelo olhar sensível da diretora através das tramas protagonizadas por personagens mulheres complexas. Um traço marcante na obra de Trotta é a forma engenhosa como a temática política serve de pano de fundo para dramas pessoais e existenciais de personagens cujos perfis psicológicos estão marcados por acontecimentos da história política da Alemanha. As conexões existentes entre crises políticas e problemas pessoais são brilhantemente entrelaçadas pelos roteiros e pela direção de Trotta.
E então eu volto a me lembrar do senhorizinho da livraria. Como um argentino de seus mais de 60 anos, é quase impossível ele não se sentir identificado quando o assunto são os impactos emocionais e psicológicos que as turbulências políticas e a crise econômica podem gerar no indivíduo em sociedade – ainda mais numa sociedade com histórico de instablidade como a argentina. Fico curiosa para saber qual seria a sua reação diante de um filme “de mulher” de Margarethe Von Trotta. E se ele, finalmente, conseguiria perceber que o feminino é, também, universal.
Pois pode até ser que exista uma sensibilidade feminina, ou um olhar que seja feminino, mas em tratando-se de um cinema produzido por mulheres, não existe outra classificação possível senão a de, simplesmente, Cinema.
Eu não faço questão que meus filmes sobrevivam. É algo que é bom enquanto você está fazendo. Tem gente que faz pão, eu faço filmes. Se o pão não sobrevive, por que meu filme deveria? Eu não me considero assim tão importante. Win Wenders e outros colegas cineastas homens provavelmente se consideram. E gostariam que seus trabalhos de toda uma vida sobrevivessem no tempo. Por mim, meu trabalho pode desaparecer. [Margarethe Von Trotta].
No entanto, nós esperamos que os filmes de Trotta durem mais que os pãezinhos da padaria e, quem sabe, nunca venham a desaparecer.
Filmografia completa:
- A Honra Perdida de Katharina Blum (1975)
- O Segundo Despertar de Christa Klages (1978)
- Os Anos de Chumbo (1981)
- A Caminho da Loucrua (1983)
- Rosa Luxemburgo (1986)
- A Promessa (1994)
- As Mulheres de Rosenstrasse (2003)
- Visão – Sobre a Vida de Hildegard Von Bingen (2009)
- Hannah Arendt – Ideias Que Chocaram o Mundo (2012)
- O Mundo Fora do Lugar (2014)
7 Comentários
Muito bom texto!! Fundamental questionar essa classificação que muitas vezes desqualifica o cinema produzido por mulheres. Viva Von Trotta!
ResponderExcluirAdorei o artigo, simples e impactante! Os filmes da diretora vão entrar na minha listinha de "quero ver".
ResponderExcluirImportantíssimos esse olhar que o artigo propõe. A desigualdade entre homens e mulheres está nos pequenos detalhes, na maioria das vezes despercebidos. Certamente vou ver filmes dessa diretora!
ResponderExcluirSuper obrigada pelo texto! Não conhecia muito Von Trotta e Isabella nos permite mergulhar de maneira encantadora nas obras da diretora. Excelente crítica que faz ao desmerecimento dos olhares tidos como femininos. Tema atual é muito relevante.
ResponderExcluirObrigada pelo texto, Isa! Ja estou curiosíssima para baixar algo dela e assistir.
ResponderExcluirsad
ResponderExcluirAktywność seksualna Delicia korzysta z internetu, naprawdę przyjaznych indywidualnych bliskich i kumpli. Filmy są zazwyczaj dobrze oznakowane, niż gdziekolwiek obserwowałem.
ResponderExcluirDeixe aqui sua contribuição ou dúvida.