David Wark Griffith, americano, ingressou no universo cinematográfico em 1908. Se você leu o artigo anterior sobre o primeiro cinema, eu informo no fim que discutiremos sobre alguns nomes importantes e fundamentais para a nossa compreensão da história; o primeiro nome que menciono é Griffith. O motivo é porque foi com os filmes de Griffith que o cinema passou a abraçar novas possibilidades e, consequentemente, novas e mais elaboradas formas de se contar histórias. Este artigo não tem como proposta ser uma mini biografia do autor, mas sim pincelar sua importância para a história do cinema.
Griffith foi o responsável por processar a história que desejava contar e encontrar formas para que visuais diferentes da até então utilizadas. Estamos falando do início do cinema e todo esse aparato tecnológico era uma novidade. Se hoje não estranhamos entrar numa sala escura, onde encontraremos uma grande tela, com um som muito alto, na época em questão, início do século XX, nós temos uma população que nunca havia se visto tão grande. Em que um trem correndo dava a experiência de estar saindo da tela. Precisamos ter em mente que tudo nesta época é novidade, e como toda novidade, nem todo mundo a compreende e/ou a vê com bons olhos.
A novidade vem de riscos, e era isso que Griffith e seu operador de câmera, ou melhor, diretor de fotografia (este conceito ainda não existia), Billy Bitzer fizeram ao longo de todos os seus filmes. Apesar de muito se falar de Griffith, é importante pensarmos em Bitzer como alguém que estava aliado ao diretor e certamente é um nome que ampara a fama que Griffith possui. Bitzer era o técnico que estava por trás de boa parte dos filmes e o close up e a montagem paralela tem seus dedos tanto quanto os de Griffith. Entretanto, engana-se quem pensa que o diretor cinematográfico é o pai dessas criações, pois há vários exemplos de filmes anteriores aos dele que fizeram uso desses recursos (listarei alguns desses filmes, com link se possível, para quem quiser assisti-los); o que Griffith fez foi utilizar essas técnicas e aprimorá-las.
É fato que nesta época os filmes de diversos países não tinham a distribuição (muitas vezes ainda precária) que se possuem hoje, por isso é difícil precisar nessa época quando um diretor estava fazendo uso de um recurso que ele já sabia ter sido usado ou quando estava "inventando-o". Esse ponto é irrelevante se pensarmos na compreensão desse diretor, de suas obras importantes, e também das demais obras da época.
No artigo "100 anos de uma forma de contar histórias" escrito por Marco Vale para a revista Laika, o autor trás um apanhado interessantíssimo da contribuição de Griffith para o cinema, ele introduz o diretor da seguinte forma,
Há 100 anos, o cineasta norte-americano David Wark Griffith (1875-1948) amadurecia o seu estilo de narrar historias através do cinema. Em 1911, Griffith lançou o curta-metragem The Lonedale Operator e, em 1912, os curtas The Girl and Her Trust e An Unseen Enemy. Três obras que apresentaram um notável nível de sofisticação na elaboração dos enquadramentos e na dinâmica de montagem em comparação a importantes obras anteriores do cineasta, tais como The Lonely Villa e A Corner in Wheat, ambos lançados em 1909. Autor e ator de teatro medíocre, este sulista de Kentucky começou a trabalhar, inicialmente a contragosto, como ator de filmes em 1908, mesmo ano que marca a sua estreia como diretor cinematográfico, com o curtametragem The Adventures of Dollie. Sua carreira como cineasta tem início na produtora American Biograph, onde dirigirá mais 450 curtas-metragens entre 1908 e 1913.
Deste período se construiu a lenda de que Griffith teria criado sozinho a gramática visual da narrativa cinematográfica clássica, de que seria ele o “pai fundador” do cinema como nós conhecemos até hoje. Lenda já impressa em 1913, quando, por ocasião de sua saída da Biograph, o jornal New York Dramatic Mirror fez uma reportagem relatando que Griffith não só era o diretor de centenas de sucessos da Biograph (informação que era negligenciada pela ausência de créditos das equipes técnicas nos filmes da produtora) como também teria criado, entre outras coisas, o close-up, a montagem paralela e até um estilo de direção que impunha uma atuação mais sutil ao seu elenco. (VALE, 2012)
O filme mais conhecido de Griffith se chama O Nascimento de Uma Nação, de 1915, um filme que consegue ser extremamente importante para quem estuda a linguagem cinematográfica, contando com uma qualidade técnica muito avançada para a época, mas não só; ele também consegue ser um exemplo explícito de racismo, assustadoramente agressivo e que coloca o grupo Ku Klux Klan como "mocinhos". Assistir esse filme é um exercício para entender o cinema, mas ainda assim é importante manter o olhar crítico sobre o conteúdo, bem como sobre o diretor. O filme na época fez grande sucesso, ainda que ele já fosse considerado um filme problemático. Eisenstein em seu texto Dickens, Griffith e nós, do livro A forma do Filme, critica a postura do diretor sem desmerecer sua importância para o cinema, ele fala que,
Na visão social, Griffith sempre foi um liberal, nunca foi muito além do humanismo levemente sentimental de velhos cavalheiros e dosces madames da Inglaterra vitoriana, do modo como Dickens adorava retratá-los. A moral piedosa de seus filmes não se eleva além da acusação cristã de injustiça humana e em nenhuma parte de seus filmes soa um protesto contra a injustiça social.
Em seus melhores filmes ele é um pregador do pacifismo e da aceitação do destino (A vida não é maravilhosa?) ou amor pela humanidade "em geral" (O lírio partido). Em suas críticas e condenações, Griffith algumas vezes é capas de ascender a um pathos magnífico (em, por exemplo, No oeste distante).
Em sua obra tematicamente mais dúbia - isto toma a forma de uma apologia da Lei Seca (em The Struggle), ou da filosofia metafísica das origens eternas do Bem e do Mal (em Intolerância). A metafísica permeia o filme Desgraças de Satã baseado em Marie Corelli. Finalmente, entre os elementos mais repelentes de seus filmes (e existem), vemos Griffith como um apologista assumido do racismo, erigindo um monumento em celulóide à Ku Klux Klan, e apoiando seu ataque contra os negros em O nascimento de uma nação.
No entanto, nada pode tirar de Griffith o fôlego de um dos mestres genuínos do cinema norte-americano. (EISENSTEIN, 1949)
Intolerância, de 1916, foi a obra seguinte de Griffith. Um filme muito mais ousado em questões orçamentárias mas que foi um fracasso de público. O filme contava 4 histórias que tinham apenas como ponto convergente o tema da intolerância; uma linguagem muito diferente para época. Apesar de possuir um grande desejo, o filme fracassou financeiramente, o que fez Griffith optar por filmes menos arriscados como aquele. No mesmo texto mencionado acima, Eisenstein procura discutir os motivos que ocasionaram esse fracasso, e ele entra em pontos que serão melhores discutidos no próximo artigo, sobre o Cinema Soviético, pois o autor e diretor faz um paralelo do uso da montagem paralela por Griffith e pelo cinema Soviético. Segundo ele, "A escola de Griffith é, antes de tudo, uma escola de tempo.". Mas o que ele quer dizer com isso?
Eisenstein faz um paralelo entre como Griffith utilizava a montagem paralela com o que ele desejava passar em Intolerância. Segundo o autor, Griffith trabalhava a montagem paralela seguindo uma lógica temporal, conectada às ações dos momentos. A mocinha sequestrada em paralelo às pessoas tentando salvá-la, a moça pensando no seu par em um plano e ele num naufrágio em outro, o trem correndo e os tripulantes preocupados; sucessão de planos do trem intercalando com outras imagens, cada vez mais rápidas, para deixar o espectador apreensivo. Tempo, tempo, tempo. O autor ressalta que Griffith nunca inovou as próprias técnicas que havia aperfeiçoado, estagnou, e quando ele quis discutir um conceito, ele precisava trabalhar o paralelismo das ideias e não do tempo, e ele não conseguiu; o público não entendeu que as 4 histórias ali possuíam uma conexão clara, porque a montagem não nos explicava isso. Além disso, Eisenstein também discute sobre como as quatro histórias que Griffith coloca em discussão não possuem relações em geral, e quando ele finaliza o filme com a convergência de todas elas não fica claro para o espectador o que ele pretendia dizer.
De todas as características de estilo da narrativa desenvolvida por D. W. Griffith, a mais lembrada é, sem dúvida, a montagem paralela, que, em inglês, recebe o nome de crosscutting, entre outros termos. A montagem paralela é a construção narrativa clássica em que o filme descreve duas ou mais ações de forma que elas pareçam acontecer ao mesmo tempo. Mas Griffith e seus seguidores criam no espectador a impressão simultaneidade para as diferentes ações não por apresentá-las em uma mesma tela. Na narrativa clássica mais hegemônica, cada ação aparece de cada vez ocupando toda a tela do filme, mas uma ação é interrompida antes que ela acabe e é imediatamente substituída pela ação seguinte, que, por sua vez, também será interrompida, pela montagem, e seguida pela ação anterior que é retomada em um ponto à frente no tempo em que ela se encontrava antes de ter sido, temporariamente, abandonada. (VALE, 2012)
Ainda levando em consideração Eisenstein e seu mesmo texto, como o próprio título, ele menciona o escritor Charles Dickens, clássico escritor vitoriano, com histórias que todos conhecemos, como Um Conto de Natal, adaptada inúmeras vezes no audiovisual, e até mesmo pela Disney quando Tio Patinhas recebe a visita de 3 espíritos (link no fim da publicação com o filme completo). Apesar de citar este filme específico (por se tratar de uma obra que passou pela infância de muitos), Dickens aparece no cinema a muito tempo, com uma lista de adaptações de suas obras. O autor era extremamente popular e Eisenstein, junto de vários pesquisadores que ele cita, traça o se perfil. Mas, o que tem Dickens a ver com Griffith? A resposta é que a narrativa de Dickens tem mais a ver com cinema, do que se imagina. E o próprio Griffith conta que suas inspirações vinham diretamente dele. A forma com a qual Dickens escreve sua história transporta o leitor ao que hoje entendemos como planos e enquadramentos (para entender sobre o assunto, clique aqui).
A chaleira começou... (extraído da obra de Dickens)
Assim que reconhecemos essa chaleira como um típico primeiro plano, exclamamos: "Por que não percebemos isso antes! É claro que é o mais puro Griffith. Quantas vezes vimos um primeiro plano como este no início de um episódio, de uma sequência, ou de um filme inteiro dele!" (Alias, não devemos esquecer que um dos primeiros filmes de Griffith se baseou em The Cricket on the Hearth!). (EISENSTEIN, 1949)
Eisenstein nos conta como Griffith encontra soluções de seus filmes através das obras de Dickens e, ao longo de boa parte de seu texto, compara trechos de suas obras com o processo fílmico de Griffith. Mas no trecho acima destacado, Eisenstein fala sobre o primeiro plano, ou o que chamamos também de close-up. É verdade que este plano já havia sido usado em outros momentos, como o filme que se encerra com um pistoleiro em primeiro plano apontando uma arma para a plateia, mas é com Griffith que este plano evolui, toma uma outra proporção e permite ao diretor extrair muito mais de seus atores. Griffith utiliza o close-up para mostrar ou apresentar algo ao espectador, algo que veremos que no cinema soviético esse enquadramento toma outro sentido, segundo o autor.
Griffith decidiu dar um passo revolucionário. Ele moveu a câmera para mais perto do ator, no que é agora conhecido como plano inteiro (uma visão mais ampla do ator), de modo que a plateia pudesse observar a pantomima do ator mais de perto. Ninguém antes pensara em mudar a posição da câmera no meio da cena... [...]
Todos no estúdio Biograph ficaram chocados. "Mostrar apenas a cabeça de uma pessoa? O que as pessoas dirão? Isso vai contra todas as regras do cinema!..."
Mas Griffith não tinha tempo para discutir. Tinha uma outra surpresa, até mais radical, a oferecer. Imediatamente depois do primeiro plano de Annie, inseriu a fotografia do objeto de seus pensamentos - seu marido, naufragado numa ilha deserta. Este corte de uma cena para outra, sem conclusão também, desencadeou uma torrente de críticas contra a experiência. (JACOBS, 1939)
Mas o que mais? O que mais falar de Griffith? Bem, Eisenstein dedica algumas páginas para falar sobre como Griffith encarava suas narrativas, e como dentro delas temos sempre um drama de dualidades, o bem versus o mal. Essa "forma" de Griffith vem de uma postura social e política, segundo o autor, já mencionado em parte no início do texto, e que mostra uma limitação de assuntos por parte do diretor. Inclusive, "limite" é uma palavra que Eisenstein trabalha muito e a utiliza para sistematizar o cinema norte-americano. Essa imposição de limites causava uma estagnação da técnica e da narrativa, em vez da livre circulação de ideias. A produção de um cinema somente para fins comerciais impediram que muitos passos fossem dados.
Se Griffith mostrou como o cinema era uma ferramenta promissora, seus parceiros soviéticos mostraram o respeito por sua obra, e pensaram criticamente em como aprimorá-la. Este, então, é o nosso próximo encontro na área de História Cinematográfica. Os textos mencionados aqui, bem como referências fílmicas encontram-se logo abaixo, recomendo fortemente o acesso a esse conteúdo.
BIBLIOGRAFIA
EISENSTEIN, Sergei. Dickens, Griffith e nós. In: A FORMA do filme. 1. ed. [S. l.]: Zahar, 1949. cap. 12, p. 176-224.
N.S.E.: Lewis Jacobs, The Rise of the American Films, Nova York, 1939.
XAVIER, Ismail. D. W. Griffith, o nascimento de um cinema. São Paulo: Brasiliense, 1984
FILMOGRAFIA
The Lonedale Operator (1911) - DW Griffith - aqui
The Birth of a Nation (1915) - DW Griffith - aqui
Intolerance (1916) - DW Griffith - aqui
Um Conto de Natal do Mickey (1983) - Burny Mattinson - aqui
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