Reflexões sobre o processo de montagem


A montagem é um dos elementos indispensáveis do cinema e há textos e mais textos sobre este processo do filme. Eisenstein possui trabalhos e mais trabalhos a respeito da montagem. Entretanto, o processo de montagem por vezes é algo um pouco abstrato, se apresentando de fato como um problema (ou solução) somente na mesa de edição.

Inspirando-me no texto Palavra e Imagem de Eisenstein contido no livro O Sentido do Filme, este artigo se propõe apresentar a montagem em diversos pontos de vista, com a proposta de facilitar a visualização da montagem, bem como de seu poder, além de também levantar a necessidade de responsabilidade por parte do montador e do diretor com a ferramenta.

“[...] Ao brincar com pedaços de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou atônitos por muitos anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição. [...]” (EISENSTEIN. p.14. O Sentido do Filme.)


A + B = C ou Duas coisas juntas se tornam uma terceira coisa

A Lagarta e Alice olharam-se por algum tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-se a Alice com voz lânguida e sonolenta: “Quem é você?”

Não era um começo de conversa encorajador. Alice respondeu muito tímida: “Eu... já nem sei, minha senhora, nesse momento... Bem, eu sei quem eu era quando acordei esta manhã, mas acho que mudei tantas vezes desde então...”

“O que você quer dizer com isto?” perguntou a Lagarta com rispidez. “Explique-se melhor!”

“Acho que eu mesma não posso me explicar melhor, senhora”, disse Alice, “porque eu não sou eu mesma, compreende?”

“Não, não compreendo”, respondeu a Lagarta.

“Temo não poder explicar melhor”, replicou Alice educadamente, “porque eu mesma não posso entender, para começar... Não acho que tenha sido um sonho, me pareceu bastante real. Foi como se tivesse sido atraída para este lugar. Não sei o motivo e estava com medo de algo, só não sei exatamente do quê. Embora estivesse dormindo, lembro-me de cruzar as ruas e atravessar a ponte. Um peixe pulou bem na hora em que eu passava e me inclinei para vê-lo. Ouvi uivo de vários cães. A cidade parecia infestada deles, todos uivando ao mesmo tempo, enquanto eu subia os degraus. Tenho uma vaga lembrança de alguém alto e soturno, com olhos vermelhos, como vimos naquele dia no pôr do sol. E recordo-me também da sensação de algo muito doce e muito amargo ao mesmo tempo ao meu redor. Depois parecia que afundava em águas esverdeadas e profundas e ouvi um canto, como dizem que ouvem os afogados antes de perder os sentidos. Parecia que minha alma tinha saído do corpo e pairava flutuante no ar. Dei-me conta disso quando me vi acima do farol oeste. Logo depois, fui tomada de grande agonia, como se estivesse em um terremoto."

A montagem não é uma exclusividade do Cinema, ela é utilizada muito antes do cinema existir, ele apenas se apropriou desta ferramenta e a fez uma necessidade no processo fílmico. Uma forma de se entender a montagem como FERRAMENTA universal e não apenas como uma especificidade cinematográfica é justamente aplicá-la em outros âmbitos.

Um relato profundo e assustador para uma criança como Alice. Após a leitura do trecho acima, a maturidade da personagem no capítulo 5 de Alice no País das Maravilhas é assustadora caso você não saiba que parte deste relato na verdade vem de Lucy Westenra de Drácula. 

Alice no País das Maravilhas, obra de Lewis Carroll em 1895, foi lançada 2 anos antes de Drácula, de Bram Stoker em 1897. Obras sem relação uma com a outra, mas que montadas juntas transformam Alice em uma personagem que está sofrendo de algo sobrenatural.

O que parece uma brincadeira, na verdade é um exercício de como a montagem transforma duas coisas em uma terceira. Isso não é mais o país das maravilhas, ou se é, é muito mais sombrio, o que, por consequência, faz com que na realidade não seja mais a obra original. 

A própria escrita deste artigo é um processo de montagem. Um parágrafo que originalmente ficava aqui, foi tirado e colocado no início. 

A construção de personagem é uma montagem de vários elementos unidos. A nossa construção enquanto pessoa para o mundo é uma sequência de experiências que pessoas tiveram conosco unidas em um grande trabalho de montagem. Mentiras sobre quem somos são apenas a montagem de terceiros sobre nós. 

Tudo é montagem.


A montagem como ferramenta POLÍTICA

Para além de vídeos extremamente fora de contexto divulgados pelo nosso atual governo em fake news para propagar suas ideologias baratas, a montagem é vista como uma ferramenta política desde muito tempo.

Alguns vão usar a montagem de forma lúdica, outros para falsear o real e doutrinar mentes. O documentarista por exemplo possui o dever de ser responsável com aqueles com quem trabalhou frente às câmeras. 

Em 1948 a revista argentina Idilio – La revista juvenil e femenina contratou a fotógrafa alemã-argentina Grete Stern para produzir fotografias que levassem em consideração a opressão das mulheres. O trabalho resultou em 140 fotomontagens que mesmo com a ludicidade do trabalho puderam ilustrar com precisão a temática.

Quando vemos a montagem aplicada nos trabalhos da Grete Stern é muito evidente este poder e esta capacidade que somente a montagem nos proporciona. Acompanhar seu trabalho (vale a pena conhecer as demais artes) é ter conhecimento também desse poder dado a mãos que são sempre colocadas em segundo plano, como é o caso das mãos de mulheres. A opressão é vista nitidamente dentro destas obras, e é através da montagem que isso é possível.

A montagem tem o poder de silenciar e dar voz a quem quer que seja, e este poder que o montador tem em mãos é muito superior do que ele às vezes imagina. Por que você fez aquela escolha e plano e não a outra? O que te leva a refletir sobre essa continuidade narrativa? Existe o ditado que o filme possui 3 roteiros: o roteiro original, o roteiro de filmagem e o roteiro de montagem, e o filme pode se tornar uma obra diferente em cada um desses estágios, e o montador precisa ter esse conhecimento sobre sua responsabilidade. 





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