Ser diretor(A) sem pedigree - Ou uma carta de uma artista proletária


Eu uso o termo "sem pedigree" desde que entrei na faculdade e compreendi a resistência por parte dos estudantes em aceitar que alguns alunos de cinema precisavam "se vender" ao mercado. Éramos então divididos em dois grupos: os cineastas com e sem pedigree. Anos depois, lendo Eisenstein, o vi utilizando a mesma palavra em um de seus livros quando discutia sobre o cinema soviético não ter pedigree, ou seja, não ter pai ou mãe com nome nem status (ele fazia uma comparação ao cinema americano), e ele refletia que mesmo assim tinham capacidade de produzir uma obra bem feita. O meu uso do termo é similar, aqueles com pedigree são aqueles que têm o privilégio de esperar suas carreiras acontecerem, ou têm tempo para conseguir se dedicar para esta. Os sem são os que precisam pagar o aluguel. Este sempre foi o meu caso.

Graças à ideia de que "artista não tem dinheiro" fica um pouco difícil dialogar dentro do grupo artístico. Sempre que escuto essa célebre frase meu eu interior tem vontade de pedir um complemento, "mas a sua família tem?" porque isso muda completamente a realidade do artista. Como artista proletária que há 8 anos entrou na área e a 8 anos trabalha no mínimo no horário comercial, fazendo dupla jornada de carreira, eu necessito dizer que existe um abismo entre aqueles que conseguem se dedicar para a arte em tempo integral, e aqueles que chegam em casa exaustos e não têm força sequer para criar algo simples. Vi ao longo dos meus 8 anos amigos e colegas de profissão perdendo a energia e o brilho nos olhos daquilo que um dia os deram vida. A verdade é que a vida para quem paga aluguel e deseja viver de arte é uma vida pautada em empresas com área artística, freelas quase nunca bem pagos e um sentimento de frustração sem tamanho.

O cinema é algo que se pararmos para refletir está diretamente ligado ao poder aquisitivo daquele que o executa, afinal, quem são os diretores brasileiros na nossa história se não aqueles que puderam ir para o exterior e comprar uma câmera? Isso torna tudo mais difícil, porque se a classe artística já é uma classe apagada, a classe artística proletária é inexistente, e muitas vezes vista como "vendida", quando nós só precisávamos quitar nossa conta do mês.

No decorrer de toda a minha trajetória no mercado de trabalho, eu passei por diversas áreas, da pós à produção, e durante todo esse tempo eu precisei olhar para esse caminho e entendê-lo não como erros de percurso, mas como agregadores de conhecimento. O fato é que sou uma diretora. Uma diretora com poucos filmes? É verdade. Mas com muito conhecimento em não ator, publicidade, o que vende ou não, câmera, equipamento de áudio e pós-produção. E certamente meus colegas sem pedigree possuem experiências diversas que enriqueceram também seus conhecimentos. Isso não é um “jabá”, mas uma outra leitura sobre a nossa trajetória.

Hoje eu enxergo a direção como uma carreira em que, por dirigir pessoas e áreas, eu não apenas preciso dizê-las o que eu quero, mas como alcançarmos aquilo, em conjunto. Uma vez ouvi que um processo fílmico é similar a abrir e fechar uma empresa. E é mesmo. Nada é fácil, nada é simples e você definitivamente precisa de capital inicial, ou um investidor anjo. O que é um filme sem uma câmera? Sem luz? Sejam elas improvisadas ou não. Tudo isso custa dinheiro. E se quando eu comecei minha carreira era difícil, com a nossa política atual está infinitamente pior.

O ensino de cinema é caro, seja para cursos ou para pagar um cursinho para passar na universidade pública. Eu sempre me frustrei vendo diretores que com seus 30 anos já tinham na carreira inúmeros filmes, mas foi quando eu comecei a ler sobre eles que eu entendi... a minha trajetória não era como a deles. Eles não entendem a nossa realidade, a realidade de querer fazer um filme mas precisar pensar nele à meia-noite de sábado porque é quando paramos. De levar 5 anos trabalhando num filme porque só tínhamos 2 horas por semana com a cabeça livre para nos dedicarmos. Eles, artistas com pedigree não entendem essa realidade. E a nossa trajetória não é romântica, é triste. Não há graça em história de superação, somente para quem vê de fora.

Mas nós temos o direito e precisamos fazer isso acontecer. Essa inclusive é a proposta do setima.art. Sempre escuto perguntas sobre "O que você quer com o sétima? Você tem previsão de quando vai gerar lucro?" e eu respondo agora: O que eu quero é que o setima.art auxilie mais pessoas ao acesso de qualidade em cinema e em direção. E não, eu não tenho previsão de lucro, e nem quero, porque o que eu quero é que o acesso seja gratuito. Estudar e produzir arte é um direito de todos, e mais ainda, VIVER de arte não é somente para aqueles com pedigree, nós temos esse direito também.

Termino esse texto relembrando um diálogo que tive uma vez:

"Você não é diretora?"

"Sim..."

"Então por que você trabalha nessas áreas que você trabalha?"

"Porque eu preciso."

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